Fez (se) em passo de corrida
Fez, Marrocos © Aloisio Nogueira 2014
Não viemos a Fez por apelo da monumentalidade que a antiga capital imperial exiba. Ou sequer, pelo profundo amor ao Saber que se cultiva na sua velha universidade, que justamente lhe granjeou o apelido de Atenas de África e até, com graça da coincidência, uma geminação com a nossa própria Coimbra – lá está! – a Lusa Atenas. Não. Viemos antes em busca de uma famosa vista que a cidade oferece sobre os tanques de curtumes – as tanneries – que, apesar do pestilento fedor que exalam, são uma das mais icónicas visões da cidade, bem no coração da sua gigantesca medina.
Instalados no hotel, jantados de tagines sem história e bebericadas aquelas que haveriam de ser as últimas cervejas por estas paragens marroquinas, das quais muitas saudades haveríamos de ter, lá inquiri a simpática e solícita empregada de mesa sobre a localização das ditas tanneries. – Que nunca tinha ouvido falar em tal coisa por aquelas bandas e o recepcionista idem.
Ficamos, por isso, sobre os formosos curtumes, pouco acrescentados, para não dizer na mesma. Mas não seja por isso que se desista da empreitada. A grande estação de Fez está ali à mão e há-de ser, como costumam ser as grandes estações, generoso manancial de informação geográfica para forasteiros. Ou em caso de falha, em último recurso, sempre teremos a boa soma de guias improváveis que se precipitam sobre nós sempre que pomos a cabeça fora do hotel. A gente sentiu-se uns Cristianos Ronaldos, de tanta atenção que tivemos naquela porta do Ibis.
Manhã cedo do dia seguinte, matado o bicho, é a hora de enfrentar o nosso primeiro Adamastor: a temível medina de Fez. Temível porque nos afiançam que não há, até hoje, notícia de que algum ocidental alguma vez dela tenha saído depois de lá ter entrado sem acompanhamento mouro especializado. Tal é a dimensão estratosférica do labirinto de becos e ruelas que, reza a lenda, não há GPS que lá penetre.
Essa estatística aziaga para os ocidentais foi-nos lembrada, sem excepção, por todos os candidatos a guias que desde as primeiras luzes da manhã pacientemente esperavam a nossa saída, na expectativa de contratação.
Bem, corrija-se que nem todos eram guias. Um deles apenas queria saber se lhe conhecíamos o primo que vivia em Lisboa. Dado que não lhe conhecíamos o familiar e já que ele estava ali e estava, também se dispunha a servir de guia da medina, não fosse acontecer a mais que provável perda de pessoas e bens que a dita estatística demonstrava à saciedade.
Fez-nos um bocado de impressão e tomamos a peito aquela tentativa de nos aterrorizar. Logo a nós, descendentes de gente feroz que já dominou aquelas partes, a cavalo numa dúzia de ginetes. Isso acirrou-nos os brios do sangue antigo: – Pois que vamos e é sem guia! Aproveita-se e faz-se um treino a 5m20s/km, que não há-de haver muitos runners no mundo com registos por aqueles labirintos.
Daí que, calçadas as sapatilhas lá fomos, a correr, medina adentro. Entra pátio, desanda aqui, desce escada, corta acolá, pelo meio de mercados e jogos de futebol de rua. Das tanneries, porém, nada. Pergunta-nos um marroquino curioso da razão da correria e ao que íamos. Tanneries, disse eu e abanou a cabeça, ele, acrescentando ao aceno a evidência de que sendo domingo, obviamente, estava tudo fechado.
Meia volta à corrida, que as tanneries e Fez foram debalde e terão que aguardar para outra maré. Escapou-se-me a globalização de calendários, que tornou tudo igual. É que dantes, quando o mundo era diverso, nestas partes do Islão o domingo era dia de pica boi.
Siga, que é preciso dar com o caminho para Azrou e a sua floresta de cedros. E doravante haveremos de dormir onde calhar, nesses montes escuros e ignotos e, por isso, vou eu aqui a assobiar para enganar o medo.