Rumo a Fez
Estrada de Tânger para Tetuão | 2014 © Aloísio Nogueira
A pensar no negócio das mantas, lá saímos de Xexuão, muito ronceiramente, subindo uma estrada que se debruçava em varanda sobre a cidade e que nos haveria de fazer regressar à Estrada Nacional número 2 ou 13, conforme as opiniões, que, essa sim, nos há-de levar rumo a sul, em demanda de Fez, onde queremos chegar, tudo correndo bem, ainda com luz deste dia de sábado de calor abafado.
Vinha com o fito de assinalar devidamente a passagem dos 1 000 km de jornada, parando no exacto momento em que o milheiro fosse cruzado pela 505 e fazendo alguma macacada que servisse de registo condigno da efeméride, como se fossemos a marinhagem na nau de Gil Eanes, a deixar padrão à passagem do Bojador, cabo que fica por estas geografias marroquinas, mas mais lá para baixo, em latitudes passantes do Trópico de Câncer.
À falta de genuínos padrões quinhentistas na nossa bagagem, fez-se um desengraçado registo vídeo no local, que serviu muito bem, já que, ademais, o sítio não é digno de nota e pouco mais serventia tem do que para um alívio rápido da bexiga.
Cumprida a função e retomado o caminho, foram-se sucedendo os quilómetros, à razão de mil metros cada um, de acordo com o padrão métrico em uso nestas terras, metros esses, cada um deles mais aborrecido que o anterior.
Só na travessia da cidade de Ouezzane a viagem animou um pouco, dada a grande soma de gentes que lá cirandava pelas ruas, com muita predominância da mocidade, que é, aliás, a agradável maioria demográfica do país. Ou se não é, parece.
Neste primeiro dia nas áfricas já deu para perceber que qualquer pequena vilória deste admirável Marrocos está repleta de gente no vigor dos verdes anos, sempre em amena cavaqueira uns com os outros ou com os seus modernos e omnipresentes telemóveis.
A cidade há-de ter umas 50 mil almas e tirando a muita gente que vimos nas ruas, pouca coisa mais merecerá o trabalho de registo, salvo o fait divers de que é cidade santa para os judeus que por aqui outrora abundavam em tempos mais ecuménicos, e de que resultaram muitas sepulturas de marabutos (ide lá à wikipédia).
Entretido que estava nestas cogitações, distraí-me das funções de navegador de que vinha investido e não dei conta que para mantermos a rota para sul, como era a nosso objectivo, a estrada, naquele ponto enganadora, requeria um anónimo desvio à esquerda, a que não demos cumprimento e, sem darmos conta, lá nos metemos muito distraídos em direcção a Rabat.
Não fora o Sul ter começado a parecer-se demasiado com o Oeste e teríamos entrado em glória em Rabat pensando estar em Fez. Felizmente alguns quilómetros andados verificadas coordenadas e azimutes, deu-se pelo engano e não restou outro remédio senão dar meia volta e retornar ao sítio que exigia a desanda à esquerda e cumpri-la a preceito.
Repostos no caminho justo, estamos, à saída de Ouezzane, a uma boa grosa de quilómetros do nosso destino de hoje, onde iremos pernoitar. O caminho vai desembaraçado de trânsito, sucedem-se as casas e campos e os campos e casas; monte aqui, vale acolá, tudo razoavelmente desinteressante e com geral monotonia, apenas quebrada, aqui e ali, pela contemplação dos notáveis carrêgos com que os motoristas locais, habilidosos no equilíbrio das massas, castigam carros e furgonetes, que, coitados, lá se arrastam pelas estradas do reino sem queixume e com notável resiliência, apesar de já cá andarem, pelo menos, desde o tempo de Suleimão, o magnífico, tal a camada de ferrugem exibem.
Grosso modo, Fez é a única coisa que trouxemos já tratada para Marrocos: vamos de hotel marcado, para bom descanso e retempero das forças, porque é de Fez para baixo é que começa o baile.
A escolha desta antiquíssima metrópole imperial, prenhe de 2 milhões de habitantes e onde se acha a maior medina do mundo, para ser a nossa última cama fofa desta viagem ao desconhecido, não foi fruto do acaso. Dá-se o caso da cidade estar à distância certa para, saindo de Tânger e passando por Xexuão, vir nas calmas e chegar ao fim da tarde. Depois, e sobretudo, é em Fez que estão as famosas fábricas de curtumes, que apesar do agoniante pivete que exalam em plena cidade medieval, por ainda se manterem fiéis às técnicas tradicionais de curtimento de peles, prestam-se à mais iconográfica fotografia da cidade: as famosas “tanneries”. Ou seja, basicamente, a escolha resultou da expectativa de uma determinada fotografia, o que roça a idiotia.
Confesso que, apesar de ter tido o cuidado de escolher o hotel junto à Estação Central dos caminhos-de-ferro, em local central e de aparentes bons e diretos acessos, vinha a moer uma apreensão, que crescia à medida que a cidade se aproximava. Era receio da dimensão da cidade desconhecida e do eventual caos de trânsito e da proverbial condução temerária dos locais, o que tudo seria agravado em dobro ou triplo se entretanto caísse a noite e nos fizesse perder naquela babilónia.
Rodamos já a faltar uma meia dúzia de quilómetros do nosso destino, o sol a querer ir à sua vida, o trânsito a engrossar e eis que ao lado da 505, em pleno andamento, um tipo montado numa zundapp local, bate no vidro da porta do lado do condutor e faz menção de precisar de falar connosco.
Dirige-se-nos num misto de todas as línguas vivas conhecidas no humanidade, mas com prevalência da sintaxe espanhola, dizendo que estava à nossa espera para nos conduzir ao hotel. Face à ausência de encomenda do serviço, declinamos gentilmente a oferta. – Que não havia necessidade, que estava tudo controlado e que sabíamos muito bem o nosso caminho.
Nada que demovesse o guia da motorizada. Ou porque tivesse topado que estávamos a mentir com quantos dentes tínhamos na boca ou porque fosse requisito da sua função de guia ser chato elevado à décima potência, o certo é que foi desenrolando o seu paleio, a nosso lado, montado no seu alazão mecânico, por uns bons 2 ou 3 quilómetros, optando por realçar na sua dissertação comercial os muitos e variados perigos da cidade, a sua estreita e intrincada malha urbana, sem vestígios de sinalética e, por isso, incompreensível para qualquer ocidental, concluindo que jamais encontraríamos o nosso caminho e que provavelmente o melhor seria nem entrar. A nossa sorte era que ele estava ali, a nosso lado, disponível, montado na sua zundapp, que em matéria de fumo e barulho relegava o próprio inferno para segundíssimo plano.
Nós lá íamos repetindo, com um sorriso amarelo, que gracias, pero no havia necessidade, até vermos que nada adiantava. Aí, silêncio durante algum tempo, olhos postos na estrada e, já em desespero, vidro corrido até cima e acelera Mário, que é a descer.
Nada porém que fizesse demover o nosso companheiro de viagem, que recorrendo ao fundo de reserva da cavalagem do motor da sua motorizada, ainda se manteve a nosso lado durante mais alguns minutos a tentar vender os seus serviços, recorrendo a uma conhecida técnica comercial de resultados infalíveis no convencimento de clientes mais renitentes, a qual compreende a prática reiterada de insultos do piorio e o lançamento de pragas até à 5ª geração. Fomos assim obsequiados na nossa chegada a Fez por sensivelmente um quilómetro de seus filhos desta, seus filhos daquela e ide-vos quilhar, com F.
Quando já estávamos a ficar habituados à sua presença, ali ao nosso lado a mandar vir como um companheiro de viagem mais rabugento, o homem ficou para trás, num trecho da estrada mais desimpedido de trânsito, onde a 505 puxou dos seus galões mecânicos.
Preocupado que vinha com o que nos reservaria a cidade desconhecida, este episódio, obviamente, não ajudou a pacificar a minha mente. Porém quando ia começar a preocupar-me a sério com a situação e chorar, surge a placa indicativa da direção da estação de caminho-de-ferro, à nossa direita e, em menos de 5 minutos, a 505 estava estacionada em bom recato frente à porta do hotel, a qual se abre para os horizontes despejados da grande e moderna Praça da Estação de Fez.
Olha o dinheirão que poupamos no guia, de cuja companhia já começo a sentir falta, confesso.