O Amor? Vem no dicionário.

Eu gosto do Dicionário de Língua Portuguesa, da Porto Editora, particularmente da 6ª edição, que está aqui aberto ao meu lado esquerdo.

Não tem pedigree. Não é um vetusto Aurélio ou um quilométrico Houaiss, nem frequenta estantes requintadas, com retorcidos em madeiras nobres. Porém, é franco e directo e não se perde em rodriguinhos nem tem hesitações semânticas, o que só depõe a seu favor. Ou seja, não lateraliza o jogo, nem atrasa para o guarda-redes. É um Jardel no tempo da Karen: bola nos pés é bola na rede.

Tenho para mim que o Dicionário cor de laranja está subaproveitado pelo género humano. Não, não exagero – uem se limita a lançar mão dele para resolver a ocasional dúvida ortográfica ou para decifrar a semiótica de algum cronista mais “mete-nojo”, desperdiça olimpicamente um armazém de civilização, devidamente coada de excrescências e impurezas que só nos atrapalhariam. O essencial da Natureza Humana está lá todo, resolvido e explicadinho, pronto a usar, para benefício, até, do mentecapto mais empedernido. Então, em matéria de metafísica, o meu Dicionário é uma bênção! Dúvida ou angústia existencial que trespasse o meu humilde espírito tem a exacta duração do tempo que demoro a chegar junto do Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora.

Quem nunca comeu distraidamente uma tosta mista a magicar sobre o sentido da vida que atire a primeira pedra! É ou não é um verdadeiro sudoku? Garanto aos não iniciados que é uma maçada das mais bravas, capaz de nos tirar anos de vida. Mas, pergunto eu: porquê escolher a flagelação, meus senhores, se temos tudo devidamente dissecado no dicionáriozinho?

Vida: s. f.; estado de actividade dos animais e das plantas; o tempo que decorre desde o nascimento até à morte.

Com esta clareza cristalina facilmente entendemos o sentido da vida: Nascemos com o propósito de participarmos em actividades. Por isso, toca a bulir, não vá morrermos de repente. Assunto resolvido.

Então? Não disse? Chego a arrepiar-me com a eficácia do dicionário nestas questões ontológicas.

Acho particularmente interessante o caso do Amor. O Amor sendo um produto da civilização, tem tirado o sono à gente civilizada. Digo à gente civilizada, porque os outros, os bárbaros, conhecem apenas a parte prazenteira do sistema reprodutivo humano e, por isso, não têm problemas nesse departamento. Limitam-se a aproveitar a bênção, com evidentes benefícios para o seu equilíbrio emocional.

Nós, os civilizados, desde o tempo do Crescente Fértil, que, por manifesta falta do que fazer, começamos um longo processo tendente a complicar a matéria.

Reconheça-se que, na altura, sem os conhecimentos científicos de agora, devia ser difícil acreditar que sendo a tarefa de perpetuar a espécie tão deliciosa e remuneradora de levar a cabo, não lhe tivesse associado um custo oculto ou uma cláusula penal escondida em hieróglifos pequeniníssimos, tipo apólice de seguro. É que somos desconfiados por natureza, porque dessa desconfiança, desse estado de alerta permanente, depende a nossa sobrevivência. Por isso compreendo.

O certo é que face à ausência de indícios da existência desse custo associado, resolvemos inventá-lo, misturando culpa e angústia em doses exageradas, fórmula que, ao longo de milhares de anos, foi recebendo intrincados melhoramentos (ou pioramentos, consoante a perspectiva) e refinados contributos de toda a sorte de gente desocupada (aspirantes a poetas, porteiros, profetas, escribas, frades, gerentes comerciais, etc.), até atingir o ponto de não retorno em que nos encontramos hoje. Estima-se que, só no incêndio da Biblioteca de Alexandria, se tenham perdido 25 000 volumes, metade dos quais em verso alexandrino, sobre as vicissitudes do Amor.

Na verdade, a busca da natureza e essência do amor, o que quer que isso seja, transformou-se no que é hoje: um dos pilares da civilização e parte integrante do seu conceito.

No início tínhamos um honesto incentivo à reprodução, que nos era oferecido, de borla, pela Mãe Natureza, que, para tal, engendrou uma complexa interacção bio-química de ácidos e bases. Hoje temos uma teia de angústias, neuras e melancolias que nos reduzem o prémio à dimensão do ridículo.

Somos uma espécie de sucesso porque a nossa multiplicação é, incomparavelmente, a melhor coisa que se pode arranjar para fazer, independentemente da hora ou das condições atmosféricas que se façam sentir. Fosse a perpetuação um mero dever e, relapsos como somos, cedo cederíamos aos encantos duma qualquer Playstation fornecedora de adrenalina portátil, caminhando alegremente para a extinção da espécie.

Pena que, quando a derivação do propósito do Amor se iniciou, lá para os finais do Neolítico, não houvesse um Dicionário Porto Editora à mão, aberto na página 95

– Amor: s.m. sentimento que nos impele para o objecto dos nossos desejos.

Nada mais simples. Caso encerrado, pois o Amor vem no dicionário. Tínhamos sido poupados a muito sofrimento sem sentido. E sobretudo, a muita literatura enjoada, o que não é, de todo, despiciendo.

Quando muito, sobrar-nos-ia a perplexidade de Lloyd Cole; literalmente: Alguma vez estaremos preparados para que nos quebrem o coração? Suspeito que a resposta seja negativa. É que não vem no dicionário.

Terça-feira, 3 de Outubro de 2006

Lloyd Cole “Are you ready to be heartbroken”, em fundo

Aloisio Nogueira

Génio em part-time. Nasceu em 1966 e está moderadamente contente com isso, embora os seus rendimentos sejam ridiculamente baixos. Part-time genius. Born in 1966, is mildly happy about that. Ridiculously small income, though.