Dakhla, o marisco e a faca

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Baía de Dakhla, Sahara Ocidental. 2015 © Aloísio Nogueira


A baía de Dakhla é um pedaço longe para ir de carro, mas vale a pena a viagem porque é um regalo para os olhos.

Na bifurcação da estrada, à entrada da estreita península que, bem lá na ponta, alberga a colonial Villa Cisneros, hoje Dakhla, bem que o polícia avisara. Depois de cumprir a formalidade das fiches e antes de dizer o bonne route da ordem, o gendarme apontou para as nossas máquinas fotográficas  e sentenciou, a rebentar de orgulho na terra, que iríamos tirar magníficas fotografias. Inch’alá, retorqui eu armado em cosmopolita que sabe como causar uma boa impressão por aquelas paragens.

Apesar do aviso, não estava preparado para aquela paisagem. Quando a estrada começa a descer para a baía dá-se conta que a coisa é a sério. Mas é lá ao fundo, depois de uma curva e de um pequeno morro, que se fica aparvalhado a olhar para aquela riqueza de mundo.

A estrada entra muito direita como que por um mar adentro. Não se consegue evitar a paragem e ficar largo tempo a pasmar perante o cenário líquido que nos depara pela esquerda. Qualquer hipérbole que aqui se use fica de tal maneira aquém da realidade que é uma tentativa quase ridícula: só vendo se acredita e não consta que São Tomé por aqui tivesse estanciado.

Como se isso não bastasse, segue-se, a outra curva e outro morro, novo cenário de cortar a respiração. E finalmente, lá mais à frente, depois de uma ligeira subida, virando à esquerda para o grande largo aos pés de um montículo, onde haveríamos de pernoitar  juntamente com outros sortudos, depara-se-nos o clímax daquela paisagem de quilómetros sem fim de uma baía sem ondas, onde a água pouco vai acima do joelho e, no final do dia, oferece espectáculos psicadélicos ao pôr do sol

Às 6 da manhã, ainda escuro com breu, fomos acordados por grande arraial de gentes e motores.Às 6 da manhã, ainda escuro com breu, fomos acordados por grande arraial de gentes e motores. Estremunhados, vimos chegar, empoleirados em velhos jipes Land Rover Santana, do tempo da colonização espanhola, largas dezenas de homens. Calmamente, enfiam-se em fatos de mergulho, carregam sacos de sal e voltam a empoleirar-se nos Santana que os levam mar adentro.

Vão apanhar lingueirão, cujo peculiar método de apanha – despeja-se sal no buraco onde o bicho se acoita – eu desconhecia. No final da jornada, por volta da hora do almoço, regressam com 50 ou 60 kg do bivalve que vendem ao intermediário que já o espera.

Em conversa de circunstância com um dos mariscadores perguntei por quanto vendiam o lingueirão ao capitalista. O homem aproveitou para o desabafo doído do explorado.  Transmitiu-me a sua indignação pelo facto de vender o marisco a 7 dirham/kg e o grossista vendê-lo depois a 60. A conversa acabou rapidamente com a intervenção de outro mariscador que, apontando para o militar que ao longe observava, o mandou calar.

A presença militar por aquelas bandas é intensa e visível, trata-se um território sob ocupação militar e basicamente nunca estamos muito distantes de um militar, os quais, aparentemente, são pouco adeptos de contactos entre locais e estrangeiros. O empréstimo da nossa faca a um dos apanhadores de marisco, para descasque de uma prosaica maçã, motivou a intervenção em passo de corrida do soldado vigilante, que mediu de tal forma mal a descompostura que deu ao da faca que num ápice se viu o tropa rodeado por apertos solidários da malta do bivalve. Não tivesse o magala metido a viola ao saco (avaliação correta do ponto de vista estratégico, diga-se) e tinha-se dado ali um 25 de Abril por causa e da nossa faca.

Dizem-nos que lá para Dezembro aquele local estará a abarrotar de reformados franceses que nas suas caravanas passam o inverno por aquelas paragens. O turismo de massas está prestes a chegar a Dakhla e tudo mudará a golpes de auto estrada e resort.

Apresse-se quem ainda quiser ver como em Dakhla  a natureza se dedicou a caprichos visuais que nenhuma descrição de viajante alguma vez fará justiça.

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Aloisio Nogueira

Génio em part-time. Nasceu em 1966 e está moderadamente contente com isso, embora os seus rendimentos sejam ridiculamente baixos. Part-time genius. Born in 1966, is mildly happy about that. Ridiculously small income, though.

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