Em Campomaior, iscas de fígado.
A Flor da Rosa lá estava, com o seu famoso mosteiro de dar pousada aos viajantes finos que não vão com a tralha às costas como íamos nós. Apesar do bicho ainda estar por matar e a Rosa ser bastante omissa no ramo da restauração, ainda demos uma volta rápida ao cenóbio, que mostrava aos turistas uma coleção de escultura medieval do Museu Nacional de Arte Antiga, que nos ilustrou bastante no assunto, com a vantagem de ser de borla.
Eis-nos em Portalegre, passante um Crato sem chama, a pedir meças ao homónimo ministro. Portalegre parecia ser uma escolha segura para um almocinho rápido, que restaurasse a fé nos serviços de hotelaria e similares do nosso interior, tantas vezes cantado pelos seus saberes no que toca aos sabores.
Porém, como ainda era cedo e ainda havia muito quilómetro de estrada para vencer, uma rápida volta ao Rossio, ausente de chamarizes de comeres que despertassem a curiosidade, logo nos deitou a ponderar Campomaior, sonho antigo de visita.
Não se vai de propósito a Campomaior, que aquilo é terra um bocadinho desviada e a desamão, mas, já que estávamos por ali, ficava o assunto tratado e a localidade desarriscada do meu caderno das terras a ver.
Além disso, Campomaior tinha a vantagem de nos permitir entrar em Badajoz por cima, que é por onde os badajozenses menos esperam que entremos e estão muito desprecatados pelo Norte. Estão mais habituados e mais que preparados para o oh Elvas, oh Elvas, Badajoz à vista. Esta conversa parece descabida, mas não é. Nós não esquecemos as pendências históricas espanholas e Olivença é nossa!, com Guerra das Laranjas ou sem Guerra das Laranjas. O segredo da recuperação de Olivença há-de ser, no meu modesto entender da arte da guerra, entrar em Badajoz por cima, tese de tática militar que diga-se, testamos com sucesso, como a diante se tratará.
De maneiras que um “Ui, em Campomaior é que se deve comer bem!” foi suficiente para nos pôr a andar do rossio portalegrense em direção à capital da flor de papel. O diabo foi encontrar a competente placa directora, que parece que os de Portalegre andam de candeias às avessas com os vizinhos torrefatores de café. É que, em Portalegre, placa para Campomaior abunda como cabelo de sapo.
Fica aqui o alerta cidadão para os competentes serviços camarários e para o senhor director geral do Plano Rodoviário Nacional ou lá como é que chama. E já que falamos nisso, bem podem limpar as mãos à parede com o serviço que nos arranjaram. Tínhamos um plano rodoviário tão jeitoso, uma rede tão maneirinha de Estradas Nacionais, que quase não era preciso nem mapas nem GPS, bastava ir seguindo as estratégicas tabuletas até ao nosso destino e pronto. Agora, colocaram IP’s em cima de EN’s, que de repente passam a IC’s e mais à frente transfiguram-se em AE’s, numa tal confusão que até São Cristóvão sente dificuldade em proteger os seus devotos que se aventuram por esses caminhos do diabo, tão minguados de tabuletas.
À quarta ou quinta tentativa, lá calhamos de acertar na carretera e, passada Arronches de raspão e trespassada Degolados bem a meio (livra!), eis-nos à entrada da raiana Campomaior, que nos há-de resgatar os estômagos e a fé nas cozinheiras locais.
Dadas várias voltas ao jardim do coreto, que tem a curiosa forma de losango, em homenagem à arrumação tática da mítica equipa de futebol local, que acabou de repente, deixando saudades na afición, o certo é que o nervoso miudinho se começou a apoderar das nossas hostes, pois dava-se o caso de que, esquadrinhados os estabelecimentos comerciais de diversos ramos que se nos apresentavam na baixa campomaiorense, nenhum deles se dedicava à restauração, o que, atentos os exemplos que vínhamos colecionando desde Proença-a-Nova Deserta, começavam a constituir um padrão preocupante, de tal modo que começamos a achar atraente uma visita não turística à monumental Capela dos Ossos.
Felizmente não foi necessária a visita à capela nem à reserva das rações de emergência que levávamos para o caso de necessidade extrema derivada de catástrofe ou fomeca durante a noite, o que quer ocorresse primeiro. Fossadas as ruas mais interiores, que se iam revelando igualmente avaras de restaurantes, enfim lá encontramos a pensão Primavera ou Rocha, já não me lembro, que prometia comida caseira.
Prometia e cumpriu à risca, apresentando-nos uma honesta travessa de iscas de fígado, em competente cama de cebolada, acompanhada da batata cozida de lei. De sobremesa uma sericaia tão sem glória, que sendo anunciada como especialidade da casa, não fossem as iscas e ficava a casa mal no retrato.
Tudo somado, ainda assim não fica aqui mal uma recomendação: em Campomaior já sabem – come-se umas iscas de fígado jeitosas na Pensão Primavera (ou Rocha, já não me lembro).
Sem mais delongas, siga a excursão para Badajoz que já vamos tarde, e acho que vem chuva.
Lá entramos na capital dos caramelos, por cima como o previsto, sem espiga. Os de Badajoz esperam a invasão vinda do Oeste e, tal a confiança, têm o Norte miseravelmente desguarnecido. Se viéssemos com tempo tínhamos recuperado Olivença para o regaço da pátria mãe sem disparar um tiro, só na base do paleio. Desgraçadamente atrasados, ignoramos a tabuleta da infâmia que anuncia a estrada para “Olivenza”, cuspimos aquele chão 3 vezes, e tenham lá paciência oliventinos, mas desta vez não podemos ir libertar-vos do jugo espanhol, há-de ficar para outra maré em que venhamos com mais folga de tempo.
Que magnifica é a estrada que nos há-de levar até Zafra, onde desaguaremos na Rota da Prata. Que bonitas tempestades de grossa chuva se formam à nossa frente, como se atravessássemos as pradarias do midwest americano.
Os quilómetros vão-se amontoando sem história. Passa-se a memória de Expo 92 de Sevilha. E finalmente uma novidade: campos imensos, a perder de vista, de algodão.
Algodão em espanhol era coisa que não conhecia. Veio-me à lembrança o Mar de Aral de boa memória, que nunca lá tendo ido era como se lá tivesse estado. Palpita-me que ao Alqueva estará reservada a sorte do Mar de Aral, que quase secou e está hoje reduzido a pouco mais que uma charca, devido a experiências soviéticas nos anos 60, que muito prudentemente meteu desvios de rios para irrigação das então recém introduzidas culturas de algodão.
E também me veio à lembrança a necessidade de meter gasóleo.
Caíste, noite, assim tão de repente e nós ainda longe de Tarifa, onde finda a jornada.
Felizmente que o Tarik é fácil de encontrar em Tarifa. Gostei do hostal Tarik, cujo nome me pareceu premonitório, pois vamos fazer precisamente o que Tarik fez em 711, só que de cá para lá. Mas, sobretudo, porque sempre tive um fraco por quartos de hotel cuja entrada se faz pela varanda.