A Tânger, que nos ficou lá o Infante Santo.

De Tarifa propriamente dita, além da pousada pouco há-de restar na memória que já não o soubesse desde 1993 quando por cá andei em deambulações diferentes. É  uma high wind area muito conceituada na comunidade das 18 pessoas que a nível mundial ainda praticam windsurf.

Novidade, novidade, só o ferry boat para Tânger que sendo de instalação recente, o avisado conselho de pessoa conhecedora destes macetes marroquinos permitiu que fizéssemos a travessia do estreito de Gibraltar com calma – sem as esperas e confusões que geralmente se armam em Algeciras – e à larga – meia dúzia de carros e um ciclista muito magro enfiados no bojo da grande nave, que nos há-de vomitar em Marrocos em pouco mais de meia hora, tal como a baleia da Bíblia fez ao arrependido Jonas, que, já que falamos nisso,  sendo profeta não adivinhou que seria comido por uma baleia. Mas isso é como tudo, ninguém está livre de um percalço no escritório.DSC_1939 72px

Ora cá estamos nós em pleno Mediterrâneo – inventor da célebre dieta mediterrânica – mar que hoje, no dito estreito, se nos apresenta tão auspiciosamente chão e manso que ninguém diria que aquela passagem fora aberta a força de ombro por Hércules, o alentado semideus grego, inconformado com a finitude do mundo, que ainda lá estão as colunas, uma em cada continente, para o provar a trabalheira que a empreitada deu. E mais não fez do que bem, pois que visto de hoje, seria um enorme desperdício de fazenda e matérias-primas se o mundo se finasse por aquelas longitudes. Abriu o estreito e bem-haja Hércules por se ter dar à canseira de o ter aberto, que só quem nunca abriu uma vala a pá e picareta é que não sabe dar o valor.

Se tivéssemos uma enciclopédia à mão, para matar o tempo que dura a travessia, poderíamos ter sabido que o nome de Gibraltar mais não é do que corruptela de Djebel Tárique – Monte de Tarique, em língua da mafoma – em lembrança ao general mouro, já falado, que em 711 muito antes de haver linhas regulares de barcos a ligar os continentes, fez o caminho inverso que fazemos agora. Chegado à banda de cá mandou incendiar os barcos, para não haver fraquezas de regressos, deu uma tareia das antigas aos visigodos em Guadalete, tomou-lhe o gosto pelos ares andaluzes e…deu origem a Portugal.

Bem sei que nos habituamos a ler na cartilha que o pai é outro. Mas, sendo certo que a nacionalidade portuguesa se forjou na Maia, ao sabor das vicissitudes da Reconquista Cristã da Península Ibérica, se nada houvesse a reconquistar não haveria Portugal e não se teria dado o 25 de Abril. E a grande verdade que nos escondem é que se Tárique não fosse, tal como nós, amigo da excursão e da aventura não teria havido necessidade da Reconquista Cristã, pois se nada havia a reconquistar.

Conclua o leitor por si, o papel preponderante que Tárique teve no nascimento da nossa querida pátria, 4 séculos depois. E nós, lusos modernos, que preitos fazemos ao feroz general? Uma vez por entre outra, na hora de dar nome ao cachorro que é tão fofinho e giro, lá fica Tárique. Talvez no 10 de Junho uma comenda póstuma não nos ficasse mal. Ao mouro, não ao cachorro, entenda-se.tanger harbour 1920

Nestas divagações de homens de ciência, mal tivemos tempo para dois dedos de conversa com um casal de americanos que muito contentes, coitados, iam de excursão a Marrocos.  Inconscientes, não tinham noção do perigo que corriam, ao meterem conversa connosco.

Em menos de um credo, lá estava o paquete/baleia a vomitar no porto de Tânger todos os Jonas que levava na barriga. Tânger Ville, sublinhe-se, que não o vulgar Tanger Med, porto para viajantes de menor categoria.

Ao descer as escadas para o porão tive medo que a 505, pouco habituada aos ambientes marinhos, estranhasse a salmoura e na hora da descarga não desse ao dimarré e cá o hércules que vos escreve, tal como o antigo, também tivesse que lhe meter o ombro e expulsá-la de empurrão. Porém, justiça lhe seja feita, portou-se como uma senhora de fina educação que é, correspondendo simpaticamente e à primeira, à solicitação que lhe foi feita pela chave da ignição.

Rapidamente nos fomos entregar aos cuidados das Autoridades Aduaneiras do Reino de Marrocos, em cujas mãos depositamos todos os nossos documentos, passaportes, livretes, seguros, tudo.

Simpaticamente dispuseram-se a preencher toda a papelada necessária à nossa entrada no reino. Que agradável surpresa, tudo ao contrário do que vínhamos prevenidos! Esperávamos dificuldades, picuinhices, expedientes dilatórios, enfim o habitual preconceito contra a moirama, quando afinal, mais simpatia no atendimento não podíamos querer. Nem sequer precisamos de sair do carro.

Bem, também nem saíamos nem o nosso carro avançava, ao contrário dos restantes companheiros da fila. Começamos a estranhar o facto de todos os outros automóveis terem ido às suas vidas com os respectivos donos e demais ocupantes. Isso e o facto do senhor simpático de colete verde e crachá com fotografia e uns dizeres em árabe, nos ter pedido uma gorjeta, palavra que repetiu em todas línguas, vivas e mortas, conhecidas a Oeste de Damasco, alegando que não era empregado da Alfândega e tinha que viver, razões que lhe pareceram boas para estar ali a reter os nossos passaportes e a exigir gorjeta que não queríamos pagar. Estivemos uns bons três quartos de hora numa amena troca de impressões sobre as suas razões por contraposição com as nossas e o carro nem para trás nem para a frente.

Felizmente que em boa hora fizemos intervir um dos vários senhores fardados que, serenos, assistiam ao nosso debate. Perguntado porque razão não era despachado o nosso carro, respondeu o gendarme que era porque ninguém lhe tinha encomendado nenhum sermão e visto que o assunto parecia estar a ser tratado com profissionalismo pela iniciativa privada do colete verde (que entretanto nos insultava) era deixar, que ele não era de se meter em vidas alheias. Mas que teria todo o gosto em ajudar, se quiséssemos, o que fez prontamente.

O seu olho clínico facilmente detectou um carimbo em falta no nosso passaporte, o qual carimbo poderíamos obter não sei onde, atrás não sei do quê. E foi à sua vida e nós à nossa, de passaportes na mão, confiantes que encontraríamos o guichet salvador antes de decorrida uma semana.

Felizmente que, depois de procurar em vão, entregamos o assunto a um polícia que em matéria de guichets era tão versado como nós, mas que entregou a resolução do nosso problema a um varredor que por ali circulava no seu metier e que rapidamente nos guiou ao carimbo salvador, merecendo 5 euros de gorjeta, que nem regateamos.

De volta ao carro, triunfantes, ficou a faltar convencer o polícia jovem de que não levávamos espingardas escondidas. Teimoso, ninguém lhe tirava que íamos à caça para Marrocos.maroc flag 1920

Fechados os portões do porto atrás de nós e cheirado o ar marroquino, trate-se pois de encontrar a estrada para Tetuão, que de Tânger estamos servidos e já bastou terem-nos ficado com o Infante Santo, que nós somos cristãos no perdoar  mas renitentes no esquecer.

E, ainda bem que me lembro, meta-se gasóleo que o tanque está no casco e o combustível por estes reinos é a € 0,89/litro, que nós somos finos e não andamos neste mundo por ver andar os outros.

Aloisio Nogueira

Génio em part-time. Nasceu em 1966 e está moderadamente contente com isso, embora os seus rendimentos sejam ridiculamente baixos. Part-time genius. Born in 1966, is mildly happy about that. Ridiculously small income, though.

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